Machado de Assis — Amargura nos trópicos
Poucos personagens destoam mais daquilo que se costuma popularmente associar ao Brasil que o maior autor da literatura nacional. Em pleno Rio de Janeiro tropical, suas histórias revelam obsessões por morte, melancolia e traição. E, ao mesmo tempo, ninguém podia ser mais representativo: nascido de um pintor de paredes mulato e uma lavadeira portuguesa, tornou-se órfão de mãe aos 10 anos de idade. Sem nunca pisar na sala de aula de uma universidade, Machado de Assis teve de inventar a si mesmo.
E que colossal construção foi essa: na definição de Jean Marcel Carvalho França, da Unesp, Machado foi “um dos poucos escritores brasileiros que podem, sem qualquer apelo ao nacionalismo tolo que atualmente contamina o país, ser incluído no rol dos grandes literatos do Ocidente”.
O crítico literário americano Harold Bloom, um dos mais respeitados do mundo, o colocou entre os 100 maiores autores de todos os tempos, ao lado de figuras como Homero, Shakespeare, Cervantes e Dante Alighieri. Bloom afirmou que o brasileiro foi o “maior autor negro da História” — e o coloca acima de clássicos como o francês Alexandre Dumas e o russo Alexander Pushkin.
Relacionado ao fato de ser negro está uma das maiores controvérsias de sua carreira. Ele enfrentou o preconceito da família de sua esposa, a portuguesa Carolina Novais, que foi rejeitada pelos pais por ter-se casado com o mestiço. Grande mestre da ironia, Machado nunca usava de linguagem direta para expressar suas opiniões. Por isso, foi acusado por contemporâneos, como José do Patrocínio e Lima Barreto, de ficar em cima do muro sobre a maior questão de seu tempo, a escravidão.
Seus livros abordam o tema do ponto de vista do dominador, com personagens centrais brancos e privilegiados. Em décadas mais recentes, críticos como Roberto Schwarz têm tentado tirar do autor essa mácula de “embranquecido”, ressaltando quanto sua crítica da escravidão e relações raciais pode ser lida nas entrelinhas.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880), por exemplo, o personagem principal aparece recordando com saudades como fazia um escravo de cavalinho na infância — e esse mesmo escravo, depois alforriado, torna-se proprietário de escravos, uma amarga ironia sobre a condição dos negros. Em uma obra escrita depois da abolição, o conto Pai Contra Mãe, de 1906, o autor foi mais explícito: um capitão do mato sem condições de sustentar o filho captura uma escrava fugida grávida.
Em todo caso, é difícil cobrar engajamento político de um autor que, como diz Mary del Priore, “começa a vida progressista e liberal e termina num paternalismo conservador”. A revolução, em Machado de Assis, ficava para a literatura, com seu livro mais radical, Memórias Póstumas, tendo passagens que soam experimentais ainda hoje. Ele recusava as novidades ideológicas da época, como o socialismo, o darwinismo social e o positivismo.
Em um país que tentou se refundar por três vezes, por meio de golpes que levaram ao chão as instituições, não deixa de ser salutar haver essa voz contrastante. Machado de Assis temperou os açucarados excessos tropicais brasileiros com uma bem-vinda dose de amargura.
Fonte: www.aventurasnahistoria.uol.com.br
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